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Utilização equivocada da Condução Coercitiva fere os direitos individuais e coloca em xeque a atuação da Polícia Federal e da própria Justiça


Por Adriano Salgado • 1 de março de 2018

 

Professor Rafael de Deus (DIR/UFLA)

Condução coercitiva. Esse termo tomou lugar de destaque no vocabulário nacional de algum tempo para cá, especialmente pós operação “Lava-Jato” e todos os seus desdobramentos. Da esfera política e empresarial, a prática adotada a ermo pela Polícia Federal chegou nas universidades através de operações que culminaram na prisão, em setembro, do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier de Olivo (que acabou tirando a própria vida após não suportar as perseguições e humilhações, e da condução coercitiva (olha ela aí) do reitor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jaime Arturo Ramirez, e da vice-reitora, Sandra Regina Goulart Almeida, em dezembro de 2017.

Para o professor Rafael de Deus Garcia, do Departamento de Direito da UFLA, existe uma total incoerência na utilização do Artigo 260 do Código do Processo Penal Brasileiro, de 1941, que não foi recepcionado pela Constituição de 1988, que prevê a qualquer cidadão o direito ao silêncio e a não autoincriminação, ou seja, ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo. “Não vejo sentido conduzir alguém de forma coercitiva para depor se ela tem o direito ao silêncio. Eles usam dessa tática como forma de surpreender a pessoa, que está despreparada, pressionada, na tentativa de que ela produza provas contra si, o que é muito grave. Além do fato de ser uma ação midiática, que é usada como forma de valorização do trabalho policial e também para induzir um clamor social, numa condenação prévia dos envolvidos”, argumenta Rafael de Deus.

O professor entende que existe uma “espetacularização” da ação policial e do próprio processo penal, que se torna assim autoritário. “O Processo Penal é o último reduto do direito. Mesmo que 99% ache que a pessoa é culpada, o Processo Penal é que garante o direito à defesa, de levantar provas. Ele sempre vai contra a maioria, que tem uma tendência à punição imediata. Quando a polícia se utiliza da massa [população] e da mídia, cria-se uma tendência autoritária, conferindo mais poder ao delegado, à acusação, ao juiz, e menos poder àquele que é acusado. A defesa do acusado é a única garantia de um processo justo”, explica.

Atualmente existem duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPC) questionando o dispositivo. Uma do Conselho Federal OAB e outra do Partido dos Trabalhadores (PT). O ministro Gilmar Mendes concedeu liminar proibindo a condução coercitiva até o julgamento das ADPFs pelo Supremo. “O que está em plena discussão é se a condução coercitiva é ou não compatível com a Constituição de 1988. Acredito que o STF siga pelo entendimento de que seja legal, porém usado da forma correta, como já adiantou um parecer do Senado Federal e da própria Presidência da República”, destaca Rafael de Deus, que é da opinião de que a condução coercitiva da forma que está sendo usada retira a legitimidade da ação policial e da própria Justiça.

Condução coercitiva é ilegal (em 10 pontos)

A nova ordem constitucional assentou o direito ao silêncio para o acusado. Mais do que isso, assentou que o silêncio não deve significar prejuízo algum para o acusado.

Assim, a condução coercitiva só faz sentido e só pode ser utilizada para aquela pessoa que tem o dever de falar.

A condução coercitiva é, então, compatível com a ideia de um depoimento indispensável, necessário e obrigatório, enfim, que tenha valor de prova.

No art. 218 do CPP, o juiz poderá determinar a condução coercitiva da testemunha desde que ela tenha faltado injustificadamente à primeira intimação.

A condução coercitiva não é compatível com quem pode ficar calado. Até porque, se quiser falar nos autos, basta o cumprimento de uma simples intimação ou o comparecimento espontâneo.

O gasto de dinheiro público e de efetivo pessoal das conduções coercitivas é considerável, e simplesmente não faz sentido obrigar alguém a sentar em uma cadeira diante da autoridade se ela for ficar em silêncio.

Desde 2008, o interrogatório passou a ser essencialmente meio de defesa e não meio de prova, pondo fim à ideia de interrogatório como um meio para se obter a confissão.

Condução coercitiva de investigado, especialmente sem prévio descumprimento de intimação, é um nome bonito para Prisão para Averiguação, uma espécie de prisão que foi enterrada pela Constituição de 1988.

Na lógica espetacular midiática, o comparecimento forçado é evidente constrangimento do acusado para falar. Isso porque, embora a lei permita o silêncio, esse mesmo silêncio é entendido pela população como presunção de culpa. Vira um show de atuação policial contra a corrupção, verdadeiro ganho político.

Delegados e juízes sabem que, mais do que procedimento investigatório, a condução coercitiva é tão somente demonstração de força e estratégia política e judicial, com uso da opinião pública para forçar o indiciado a falar.

Nota sobre o artigo 260 do CPP:

Justificam a condução coercitiva de acusado no art. 260 do CPP (ainda que boa parte dos doutrinadores entenda pela sua não recepção constitucional). No entanto, o texto diz assim:

Art. 260.  Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.

Primeiro, diz-se “acusado”. Acusado é quem já teve denúncia recebida pelo juiz.

Em segundo lugar, diz-se “interrogatório”, que se aplica apenas para o depoimento do acusado em juízo na Audiência de Instrução e Julgamento, não podendo ser mero depoimento diante do delegado.

Em terceiro lugar, o artigo limita a possibilidade da condução coercitiva para os casos de descumprimento de uma primeira intimação.

No mais, há ainda outra ilegalidade. Delegado nenhum deveria poder determinar a condução coercitiva. Trata-se de violação, ainda que pontual, da liberdade de ir e vir, restrição que só o poder judiciário pode autorizar.

Delegados e juízes atuais conseguem ser mais autoritários que o legislador de 1941.

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