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“Future-se ou devoro-te”, por Paulo Martins (USP)


Por Adriano Salgado • 2 de agosto de 2019

Beatus qui legit et qui audiunt uerba prophetiae et seruant ea quae in ea scripta sunt tempus enin prope est (Feliz aquele lê, aqueles que ouvem as palavras da profecia e observam aquelas que nelas estão escritas, pois o tempo está próximo)
(Prólogo do Apocalipse de João)

Após semanas de silêncio preocupante, o governo federal e seu arauto, “anjo” da Educação, o sr. Weintraub, cumprindo um prenúncio de gestão (d)eficiente ou uma profecia mal ajambrada de João, propõe seu plano de metas que em linhas gerais são apresentadas sob a rubrica do projeto “Future-se”. Cumpre dizer que qualquer ação em Educação no Brasil segue metas que independem de desejos idiossincráticos, de maniqueísmos doentios ou de desmedidos posicionamentos ideológicos e/ou religiosos, antes são absolutamente técnicos e historicamente construídos sob a égide da democracia e sob os auspícios do republicanismo.

Em linhas gerais, o famigerado – perdoe-me, Rosa – projeto de governança das Ifes (Instituições Federais de Ensino Superior) não apresenta nenhuma novidade “inovadora” e inolvidável, já que em tese é praticada em muitas universidades públicas e privadas faz muito tempo mundo afora e mesmo no Brasil, portanto o programa deveria se chamar “Passade-se”. Mas o futuro projeto de lei, ao que parece – e neste governo tudo deve ser modalizado, já que nem tudo que se diz ocorre, tampouco nem tudo que ocorre se diz –, resume-se às ações nos âmbitos: a) gestão, governança e empreendedorismo; b) pesquisa e inovação e c) internacionalização. Entretanto, ao descobrir os mistérios da roda, o sr. Weintraub pode cometer iniquidades (1), equívocos (2), fanfarronices (3), enfim coisa inútil em “papo sério”, como sói acontecer.

Vejamos como: gestão. Quando pensamos no Estado brasileiro de modo geral e nas universidades públicas em específico, salvo raras exceções, o que temos é um enorme mamute com cãibras. A burocracia kafkiana – aí sim, professor! –, o imobilismo, a ação impeditiva de certas corporações e ineficiência de gastos alimentam o imaginário de que tudo que é realizado pelo Estado é de péssima qualidade ou é ineficiente ou é inútil, e isso é no mínimo uma injustiça com gestores cujas ações conseguem ser eficientes e importantes a despeito de todos esses problemas. Quero dizer que muitas universidades têm problemas de gestão, porém não é razoável desmontá-las para corrigir suas ineficiências, mas não desmontá-las contraria a política ultraliberal do governo Bolsonaro e seus ministros ultraliberais, Guedes e Weintraub.

Pelo que se tem notícia, sob a perspectiva da gestão o projeto prevê a incorporação de O.S. (Organizações Sociais)(4) que, se em algumas áreas são efetivamente úteis, entretanto, pelo que penso, nessa seriam desastrosas, pois afetariam o cerne da universidade, solapariam a estrutura meritocrática das Ifes, afinal introduziriam nas instâncias de decisões de políticas acadêmicas quadros alienígenas à universidade. Esses passariam a decidir sobre os rumos e as prioridades da universidade, isto se tomarmos aquilo que preconizam os ministros e o presidente do Brasil que creem que a autonomia da universidade produziu um aparelho ideológico a serviço do comunismo internacional. Meu Deus! Assim aquilo que se pretende supostamente sanear sob o ponto de vista administrativo, nada mais é do que a semeadura, no seio da universidade, de um aparelho, este sim absolutamente ideológico, para dar consecução a um desmonte da educação pública e, principalmente, gratuita. Projeto que desonera o Estado da responsabilidade de financiamento da educação.

Ponto dois: governança. Algo que também incomoda o governo federal é justamente não poder intervir nos conteúdos e nas formas de ministração desses cursos ou ainda fechar alguns e abrir outros ao seu prazer. A autonomia universitária é explícita na Constituição de 1988 em seu artigo 207 (cumulado ao 206): “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. § 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. § 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica”, cumulado ao artigo 206. Inconformado com a autonomia, o governo pretende, ao arrepio da lei maior, implantar uma estrutura paralela que, por conseguir atrair recursos financeiros, instaura a política do “quem paga, manda”. Algumas semanas atrás, o Planalto (15 de maio de 2019), por meio de um decreto presidencial, feriu duramente a autonomia das universidades federais, já que o governo passou a interferir diretamente na nomeação de dirigentes universitários de segundo, terceiro e quarto escalões nas Ifes. Chego à conclusão que o Future-se é uma resposta à inconstitucionalidade dessa medida que já foi questionada pelos partidos de oposição ao governo.

O empreendedorismo. Existem termos invariavelmente ligados ao meio empresarial que são de época. Não que a reengenharia, a resiliência, a liderança, a qualidade total por sua filiação e apreço signifiquem algo do mal em si, antes servem como mantra aos ouvidos do mercado como que dando o tom para suas ações, que – como não pode deixar de ser –, têm de ser lucrativas. Há sem dúvida lugar na universidade para o estudo dessas questões, já que a universalidade do conhecimento é a principal característica das IES (Instituições de Ensino Superior). Ocorre, porém, que essas instituições ainda que devam ser geridas com eficiência – devem ser responsáveis – não funcionam exatamente como uma empresa, não se subordinam ao mercado, não desejam ser acumuladoras de capital, não têm o objetivo de gerar lucro, tampouco seus governantes devem estar preocupados em enriquecer. Se o empreendedorismo for uma ação que o governo encontrou para gerir a Universidade Pública, para que funcione como uma empresa, então esse não nos serve. Mas se o conceito funciona como conteúdo pedagógico que ajude a formar nossos alunos para atuar no mercado, isso já se faz.

As Universidades Públicas estão na contramão dessas ideias, já que são autarquias, isto é, “pessoas jurídicas vinculadas à administração direta dotadas de personalidade jurídica própria”. Elas têm vida própria e possuem competência para o exercício de suas atividades administrativas. “Isso quer dizer que uma autarquia possui autonomia administrativa para desenvolver suas atividades.”

Dessa maneira, não apenas a constituição garante à universidade sua autonomia, mas também a lei que regula o funcionamento das autarquias, ainda que sejam fundacionais. Vale notar que a autarquia, além dessa característica, funciona diferentemente das empresas públicas, as estatais. Essas visam ao lucro, estão no mercado, aquelas são desprovidas de caráter econômico e “são titulares de direitos e obrigações próprias, não se confundindo com os direitos e obrigações do ente político criador”. Por fim, esses entes jurídicos “são instituídos para prestar serviço social e desempenhar atividades que possuam prerrogativas públicas, de forma especializada, técnica, com organização própria, administração ágil e não sujeita a decisões políticas pertinentes aos seus assuntos” (5). Qualquer tentativa de o governo Bolsonaro agir invasivamente, estará agindo fora da lei. Mas isso também não parece ser uma preocupação desse governo.

E a inovação e a pesquisa? Ao contrário do que Bolsonaro e Weintraub costumam dizer, as IEES e Ifes são responsáveis por 95% da pesquisa do País. Dizem eles que não se faz boa pesquisa, afinal as universidades são ineficientes. Menosprezando a pesquisa realizada no País hoje e dizendo que é necessário que o novo modelo de Educação Superior realize pesquisa e seja inovador, o MEC está sinalizando que o padrão atual tem de ser reformulado. Se verificamos posicionamento em relação à gestão, à governança e ao empreendedorismo que estão a serviço do novo ensino superior, vê-se claramente seu caráter arbitrário. Localizando a boa pesquisa como aquela que gera recursos, isso faz com que a pesquisa teórica, por exemplo, seja abandonada e apenas a ciência aplicada seja considerada. Engana-se o presidente mais uma vez, pois imagina que, ao pôr em prática esse tipo de política pública, está afetando apenas as Humanidades – seu alvo preferencial.

Parcerias com a iniciativa privada, valorização de patentes, apoio a ações de inovação, incentivo ao empreendedorismo e aos programas de QT, a preocupação com o financiamento independente do Estado são ações muito antigas nas universidades de ponta no Brasil. Quando, por exemplo, observamos algumas fundações internas na USP, na UFRJ, na UFMG e em outras tantas universidades (6), veremos que grande parte da panaceia do anjo Weintraub já é cumprida por elas faz muito tempo. Ainda que para muitos as fundações internas sejam questionáveis sob o argumento de que elas produzem internamente desigualdades funcionais e injustiças financeiras e contábeis, é inegável que são vetores importantes para o desenvolvimento de pesquisa aplicada, que não desmerece áreas em que as aplicações não sejam muita vez nem imediatas, nem necessárias. Essas fundações entre outros objetivos surgiram com o fito de captar fundos, engessados pela estrutura paquidérmica da burocracia universitária.

Fora do Brasil, os Estados Unidos são sistematicamente citados como exemplo de interação forte e sólida entre iniciativa privada e universidade pública ou privada – não afastando universidades europeias e asiáticas. Harvard (7), Yale (8) e Princeton (9), por exemplo, possuem uma estrutura fortemente profissionalizada a fim de gerir e gerar receitas a serviço de sua sustentabilidade e qualidade, entretanto nessas universidades de classe mundial nenhum tipo de pesquisa é relegado a segundo plano, ao contrário, nessas universidades paradigmáticas, as pesquisas que geram receitas reforçam a existência de áreas em que as aplicações sejam nulas ou exíguas. Lá ninguém abre mão de Estudos Clássicos, Física Teórica, Paleontologia, Artes etc.

Enfim travestido de modernidade, o “Future-se” é arma perigosa nas mãos mal-intencionadas desse governo. Afinal esse sempre quis claramente o estado mínimo ultraliberal no qual não há espaço para a Educação Pública de nível superior. O que nos resta é resistir em defesa das leis e da Constituição do País para que não sejamos devorados por essa política pública antipopular nefasta e nefanda.

Paulo Martins é professor e vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP)

Fonte: Jornal da USP

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