Por Adriano Salgado • 1 de julho de 2019
Estudos traçam retrato preocupante da educação. Diferença de remuneração pode superar 100% no mercado, dependendo das redes em que estudantes tenham obtido diplomas
A valorização de quem está à frente da sala de aula deveria ser o carro-chefe da educação, mas se tornou um dos maiores desafios do país. Um dos principais sintomas da falta dela é o salário de quem dedica a vida a estabelecer os alicerces sobre os quais se formarão outros profissionais. Estudo do Movimento Todos pela Educação mostra que um professor do ensino básico formado em nível superior ganha, em média, 30% menos que outro profissional com a mesma escolaridade. Pior: mudar esse cenário e equiparar as condições de remuneração parece longe da realidade. Isso porque seria necessário, segundo a mesma organização, um investimento de pelo menos 43% nessa etapa escolar, que vai do ensino infantil ao médio. E o país dá cada vez mais sinais de que não falta estímulo e reconhecimento apenas a quem ensina, mas também a quem se forma. Estudo da Fundação Getúlio Vargasrevela que o tipo de estabelecimento onde se cursou o nível médio e a graduação será determinante para rebaixar ou elevar os vencimentos de profissionais – disparidade que pode superar os 100% e que persiste mesmo entre profissionais que se formaram igualmente em universidades federais.
Mais grave que o diagnóstico talvez seja a projeção sobre essas desigualdades. Mal de saúde em termos econômicos, o país dificilmente terá recursos para investir o tanto que deveria no setor, conforme destaca o coordenador de projetos do Movimento Todos pela Educação, Caio Callegari. Ele explica que o pagamento do educador responde pela principal fatia do gasto em educação. Em 2018, o rendimento médio dos professores da educação básica com curso superior correspondia a 69,8% do salário médio dos profissionais de outras áreas com o mesmo nível de escolaridade. Enquanto a média salarial de quem ensina foi de R$ 3.823 no ano passado, a do conjunto dos trabalhadores brasileiros graduados ficou em R$ 5.477, segundo o Anuário Brasileiro da Educação 2019 (veja arte). Ao se comparar o salário médio dos profissionais de áreas de exatas ou saúde, a defasagem é de 50%.
Em Minas, 85,6% dos docentes do ensino básico se formaram na universidade, sendo que 36,3% deles têm pós-graduação. Em nível nacional, esses números ficam em 79,9% e 36,9%, respectivamente. Em compensação, a média salarial dos professores da rede pública vem crescendo. Nos últimos sete anos, o aumento foi de 6,4%, aponta o documento. Mas os desafios de melhor remuneração persistem e se expressam por outros indicadores. Cerca de 10% dos municípios, por exemplo, ainda não têm plano de carreira para seus professores.
Falta incentivo à especialização
As dificuldades escondidas por trás dos números aparecem no dia a dia dos profissionais de ensino e se refletem na falta de estímulo objetivo ao aprimoramento. Na sala de aula há 16 anos, o professor de ciências e biologia Ary Luiz Gonçalves, de 39 anos, trabalha atualmente em uma escola estadual no Bairro Gameleira, na Região Oeste de Belo Horizonte, e em um estabelecimento privado no Bairro São Paulo (Região Nordeste). Defendeu na semana passada sua tese de mestrado, mas, apesar do investimento na carreira, não acredita numa escalada financeira. “Tenho a impressão, às vezes, de que essa diferença salarial é maior do que 30%. Na rede estadual ainda há uma porcentagem pequena de acréscimo no salário por causa da pós-graduação, mas não vou receber nem R$ 3 mil. Na particular não tem incentivo, a especialização não é valorizada”, afirma. “A pós-graduação é mais para minha capacitação pessoal. O mestrado abre a possibilidade de dar aulas em uma faculdade, mas também não garante nada, porque os estabelecimentos não estão contratando em caráter efetivo.”
Ary leciona para alunos do 6º ano do fundamental até o 3º do médio. No estado, o salário líquido é de R$ 2,3 mil. “Tenho esposa e filha. Com uma rede só é impossível sustentar a família. Queria que não fosse assim, porque é meu local de trabalho. Falta estrutura, falta compromisso de outros colegas e uma série de fatores ajuda a desvalorizar a profissão”, diz. O professor considera que não é só dinheiro que vai mudar a educação. “Não dá para mudar o sistema de uma hora para outra. É preciso investimento não só financeiro, mas de estrutura, de material disponível para fazer trabalho diferenciado. A escola pública onde dou aula não tem verba para o transporte de uma excursão. Quando conseguimos veículo, às vezes, é doação.”
Muito mais que uma questão financeira, uma sinalização cultural. Para especialistas que analisam as disparidades de rendimento entre educadores do ensino básico e profissionais de outras áreas, demonstradas no último Anuário Brasileiro da Educação, estimular o aprimoramento dos professores é um indicador do que o país projeta para o futuro.
O coordenador de projetos do Movimento Todos pela Educação, Caio Callegari, afirma que a disparidade da remuneração dos docentes é fruto do baixo investimento em educação básica. O Plano Nacional de Educação (PNE) determina a valorização dos profissionais do magistério das redes públicas da educação básica, a fim de equiparar o rendimento médio ao dos demais profissionais com escolaridade equivalente, até o fim do sexto ano da vigência do plano, ou seja, até 2020. “Equiparar é o primeiro passo. Quando se olha para os sistemas de educação de qualidade do mundo, eles têm em comum a valorização dos professores. E não é só salarial, mas cultural, tem a ver com a imagem do docente como o profissional mais importante para o futuro do país”, diz.
Apesar de ainda muito distante do ideal, a situação avançou. Em 2012, a média salarial de um professor graduado correspondia a 61% da remuneração de outros profissionais também com formação em nível superior. Callegari chama a atenção para a necessidade de pensar uma carreira que estimule o professor a se formar, fazer cursos de formação continuada e ter experiências pedagógicas fora da sala de aula.
Por enquanto, isso parte muito mais da paixão de cada profissional do que propriamente do reconhecimento financeiro ou estímulo pelo aprimoramento. Que o digam pessoas como o professor de educação física Bruno Ambrózio Teixeira, de 33. Lecionando há 10 anos, ele tem bacharelado, licenciatura e pós-graduação. Mas, na escola particular não tem remuneração extra pela especialização. A recompensa vem apenas do estado: 5% a mais. Por 18 aulas por semana na rede, são R$ 2 mil. Além das duas redes, para dar um pouco mais de musculatura ao contracheque ele trabalha em uma clínica. “O dinheiro é suado e se eu fosse um pai de família complicaria, teria muitos problemas”, diz.
EVOLUÇÃO A história de Bruno se confunde com seu amor pela profissão. De 2006, quando tinha apenas 18 anos, até 2008 trabalhou como porteiro de uma escola particular da Região Centro-Sul de BH, sempre mirando o sonho de se formar em educação física. Morador do Bairro Conjunto Cristina, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, trabalhava de dia e fazia faculdade à noite.
Em 2008 e 2009 foi para uma outra escola, no Bairro Funcionários, onde ocupou o cargo de disciplinário. Depois teve a oportunidade de lecionar, quando terminou a faculdade, aos 22 anos. Na família todos são da área de educação. O irmão gêmeo, Breno, tem a mesma história – de porteiro a professor – e a irmã também trabalha em instituição escolar, na parte administrativa. “Escolhi o curso de educação física porque gosto. Amo o que faço. Ver o aluno caminhando é o melhor salário que recebo. E vê-los formados é muito gratificante”, diz.
Em um trabalho no qual assume diversos papéis, atuando ora como mestre, ora como pai e por vezes, psicólogo, levar sua história de vida para os alunos da rede pública é uma das formas encontradas por Bruno para estimular os adolescentes a seguir em frente. E o trabalho não é só em na escola. Em casa, é preciso se dedicar a planejamento de aulas e se atualizar sempre. “Briga-se muito pela equidade, mas ela só virá a longo prazo.”
Desnível salarial resiste às cotas
As disparidades na educação, que começam entre aqueles responsáveis por ministrar a formação básica aos estudantes do país, se estendem a profissionais que já conseguiram o sonhado diploma do ensino superior, apesar de políticas afirmativas que buscam democratizar o acesso às universidades públicas brasileiras. É o que mostra estudo desenvolvido na Fundação Getúlio Vargas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNADC) de 2018. O trabalho indicou que profissionais com o mesmo nível de formação são remunerados de maneiras distintas, dependendo da rede na qual cursaram o ensino médio e o superior. A diferença nos casos extremos pode chegar a 140%.
O trabalho indica que disparidade na educação, que se tentou amenizar promovendo o acesso de estudantes a universidades públicas por meio da Lei das Cotas, ficam escancaradas na ponta final do processo. Alunos do ensino público e privado devem ter chances de ingresso divididas meio a meio nas instituições federais de ensino superior, mas elas se perdem ao longo do curso e as desigualdades voltam à tona em um raio-x do mercado de trabalho.
De acordo com estudo do pesquisador Daniel Duque, da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), o relatório da PNADC mostra que, apesar de o país ter avançado, a desigualdade persiste. O especialista constatou que a população brasileira está cada vez mais escolarizada. Mas, ainda há uma enorme diferença de classe e entre os estudantes do ensino público e privado. Superar essa segmentação é um dos desafios do país. Segundo o estudo de Duque, formados em universidades públicas e no ensino médio privado ganhavam cerca de 140% a mais, em 2017, do que aqueles que tinham se formado em universidades privadas e no ensino médio público. Em 2016, essa diferença era de pouco menos de 114%.
“Esse levantamento mostra que, apesar de avanços, a educação superior pública brasileira ainda está longe de ser inclusiva. Há um esgotamento da melhora via Lei de Cotas e uma redução da presença de jovens de classe social mais baixa pleiteando uma vaga na universidade pública, devido ao mercado de trabalho ainda fragilizado e à necessidade de procurar um trabalho”, diz o economista.
Ano passado, de cada 100 brasileiros 17 tinham ensino superior – um aumento em relação a 2016, quando eram apenas 15. O principal destino dos alunos de nível superior ainda é a universidade privada. Mas o levantamento mostra que as universidades públicas já são consideravelmente inclusivas: em 2018, cerca de 74% dos alunos dessas instituições tinham vindo de escolas públicas.
Mas os dados mostram que, entre 2017 e 2018, não houve avanços na inclusão. “Os dados apontam para uma estagnação da inclusão de estudantes de ensino médio público nas universidades públicas, que não necessariamente vai melhorar”, destaca. “E indicam que o mercado de trabalho tem aumentado sua concentração de renda em linha com tal segmentação. Apesar das cotas, ex-alunos de ensino médio privado ainda são maioria entre os que se formam em cursos mais competitivos, como medicina e engenharia”, completa.
Junia Oliveira/Estado de Minas